quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Ela era a Rosa; (I)

Ela desceu as escadas devagar. Viu que não havia ninguém nos degraus e resolveu parar de descer. Olhou em volta: não havia nada, absolutamente nada além do ar que circulava e da poeira que voava. Da última vez em que estivera ali, haviam cores por todos os lados. Agora,não.

Sentada naquele degrau, relembrava de quantos sorrisos havia dado naquele lugar. Muitos, certamente. Lembrou também de quantos sonhos foram quase realidade, e de quantas alegrias foram reais. Ela lembrava, e lembrava de detalhes que nunca imaginaria lembrar. O toque na mão, a rua, a lua. A desculpa esfarrapada. Uma lágrima caiu, e molhou o sorriso que estava em seus lábios. "Sorriso feliz para uma lágrima de saudade", pensou.

Seu nome era Rosa. Era, porque hoje já nem sabe que nome tem. Era, porque hoje já nem sabe o que ser. Seu nome era Rosa e rosa sua flor preferida. Quanto tempo ela viveu sem saber que seu nome tinha um significado tão especial? Quanto tempo ela viveu sem saber que sua alma era especial? Mas Rosa não quis responder a essas perguntas, preferiu ficar calada e ouvir o som do silêncio.

O som do silêncio lhe dizia para ficar ainda mais calada, e só ouvir a própria alma, que lhe gritava cada vez mais alto : "Rosa! Sinta esse teu coração, sinta esse vazio! Sinta culpa do que fez, e corra para o banheiro! A náusea deverá ser forte". Engano. Rosa deverá ser forte! Deverá pensar certo, por mais que esteja pensando e agindo sozinha. Deverá aprender mais nesses meses do que em todos os anos vividos. Deverá, e ponto final.

Outra lágrima escorreu, mas dessa vez não alcançou nenhum sorriso naqueles lábios. Os degraus balançavam, as paredes giravam, e ela realmente sentiu vontade de vomitar. Pensou no que havia comido durante o dia, e percebeu que apenas uma xícara de café a alimentava. Não sentia fome, mas iria comer.

Aquela escada estava realmente gelada e o vento que soprava estava incomodando como nunca, mas Rosa não ligava. Ela apenas pensava em não pensar em nada, mas assim, acabava pensando em tudo. Resolveu pegar o sanduíche na sua mochila e a garrafa de água. Quando viu que não havia água, xingou bem alto. Um xingamento sem motivo, ela sabia, mas também queria xingar. Xingar o mundo, os próprios pais, os pais dos outros, os filhos dos outros, ela mesma. Porém, xingou apenas uma garrafa de água vazia. Era o que bastava.

O sanduíche de ricota estava com um sabor bom, mas não caiu bem no estômago dela. Provavelmente por não ter comido nada, passou mais mal ainda. Rosa queria correr, queria fugir, queria trocar de corpo e poder voar. Mas não podia. Então vomitou ali mesmo, no degrau abaixo, e quase sujou o tênis.

A ânsia aumentava, e ela não conseguia mais pensar direito. Foi nesse momento que ela percebeu que o vento realmente soprava gelado, e em sua mochila não havia nenhum casaco, nada para cobrir-se. Foi nesse momento que ela resolveu gritar por socorro. Gritar por ajuda, para ver se algum estranho ouvia. Mas ela sabia que nenhum estranho iria se importar com um grito, ainda mais vindo dela, uma garota despenteada, com a maquiagem borrada, tênis velho e mochila rasgada.

Gritou, e gritou tão forte que a dor de cabeça aumentou. "Preciso sair daqui", disse em voz alta. "Você vem comigo? Sim? Que ótimo ter sua compania!". E foi-se, acompanhada de sua mochila e de suas dores. Em pé, fora daquele lance de degraus, tentou aliviar o gosto ruim que sentia, cuspindo no chão. Sem um espelho, tentou amenizar a maquiagem borrada pelas lágrimas. "É, nada mal. O que acha?", e virou-se para o nada como se fosse uma outra pessoa. "Nada mal,Rosa. Agora vá."

Saiu do prédio, e assustou-se quando olhou a noite escura. "Puxa, quantas horas fiquei aqui?". Rosa não sabia e não queria saber. Queria apenas sair daquele prédio e se juntar à multidão. Então passou pela portaria, olhou em volta, e decidiu virar à esquerda. As pessoas passavam e Rosa apenas pensava em chegar rápido em casa. Mas apesar das dores, apesar do vazio e do nada que a acompanhava, sorria.

Sorria porque sabia que o dia estava acabando, e achava isso bom. Sorria porque sentia que suportava aquelas dores, e isso era um mérito. Sorria porque sabia que as pessoas aprendem mais pelos caminhos difíceis, e isso a deixava esperançosa.
Sorria porque ainda restava um pouquinho de Rosa, e essa era a verdade.
Uma vez Rosa, sempre Rosa.